domingo, 5 de maio de 2019

Deseja um cafezinho? Ou quem sabe umas quitandas?




Deseja um cafezinho? Ou quem sabe umas quitandas?


- Não obrigado. (respondi).
- Tem certeza, posso passar um café agora para você.
- Achei que já tava pronto! Vai assar os biscoitos também?! (risos)
- Não, já comprei, compro todo fim de tarde.
- Metodicamente?
- Sim! (riu um riso de boneca barata).
- Você ta bem?
- Estou. Por que?
- Parece desconfortável.
- Como?!
- Estou tentado dizer que parece que existe um cacto invisível entre você e o encosto do sofá, te deixando em uma posição que, a meu ver, as pessoas não suportam ficar por muito tempo.
- Cacto? (riu sem mover as sobrancelhas, rosto, braços e pernas).
- (Silêncio)...
- Aceito um copo d’água.

O improviso não passou de um clichê barato, mas sob clima rarefeito, só deu pra pensar nisso. Precisava fazer uma pausa silenciosa aqui. Ganhar tempo. Cacto? Acredito que no contexto que usei essa palavra ficou clara, mas, fiquei intrigado com as estranhas possibilidades de significados que “cacto” pode vir a ter quando vem unitária em uma exclamação, seguida apenas por um rosto pouco expressivo e um corpo inerte. A dúvida ecoou. Confesso que fiquei preocupado. Aprendi logo cedo que pessoas que riem sem mover as sobrancelhas geralmente têm problemas sérios.

Ela retornou com a água e sentou em outro sofá. Manteve-se à mesma distância de mim e repetiu a pose. Tomei a água como se fosse suco e fiz perguntas que implicam em respostas pessoais. Ela respondeu de forma barroca. A voz era dela mas as palavras e idéias, de um idoso antiquado. Não pensou, replicou.

Tentei ser otimista, mas sou péssimo nisso. Meu esforço durou apenas meia hora. Longa meia hora. Então, olhei para ambos os lados, agradeci a água, criei um compromisso sem título, me levantei e me despedi. Ela me cumprimentou de longe e de leve, segurando meus dedos com as pontas dos seus dedos e olhando para minha gola. Ficou claro como a água, não havia motivo para estar ali.

Saí ao léo, sentei num banco de praça e paguei um pastel a um mendigo bêbado. O pasteleiro, o bêbado, eu e uns pardais comemos e rimos muito enquanto o sol do fim da tarde aquecia meus cabelos. A boca da noite veio sorrindo, e eu a beijei feliz.

Um tempo depois fiquei sabendo que aquela moça gostava de mim. Ela disse a alguém que gostava da minha companhia, que eu era bom de papo e engraçado. Saber disso deu algum sentido ao convite mas, Deus, que moça estranha. 

Ela tinha a feição e a voz agradável, contudo, a formalidade gratuita deixava seu olhar opaco. Afugentava a vida. Parecia uma casa vazia.

Cá entre nós, mesmo sabendo do seu apreço não destilei uma gota sequer de culpa. E que formalidade me cansa, não tem outra forma de dizer isso. Peraí, acho que tem: a formalidade é tóxica, apodrece até os ossos. Sério. Sei que soa estranho para alguns, mas é que ultimamente tenho me deparado com muita gente que confunde educação com formalidade e pior, é formal até dentro de casa. Ora, se vou à casa de alguém como pessoa e não prestando um serviço, estou cedendo uma fatia do meu tempo de vida. Estou “vivendo com essa pessoa” por alguns momentos. Isso é coisa séria. Meu tempo de vida é muito precioso, pois, ao que tudo indica, só tenho essa chance de viver, então, da mesma forma que não quero gastar muito dinheiro comprando um objeto de pouco valor, também não quero disponibilizar meu tempo de vida consciente com alguém que senta em seu próprio sofá de forma visivelmente desconfortável, coluna reta, queixo erguido, vestindo um traje que sei que ela não usa costumeiramente e diz:

“Deseja um cafezinho? Ou quem sabe umas quitandas?"

Bizarro. Parecia que ela estava tentando esconder um corpo. No primeiro momento fiquei assustado. No segundo pensei em fazer sala, coisa que odeio, só para mantê-la naquela posição alguns instantes mais, por pura pirraça. Ouvir: “Deseja um cafezinho? Ou quem sabe umas quitandas?” soou plástico demais pra mim. Me oferecer um café assim já é o cumulo da formalidade, a pose e a conversa seguinte foram como colocar na boca uma moela inteira e descobrir que está cheia de pedriscos por dentro. Eu tinha que sair pra cuspir.

- “Aceito um copo d’água.”

Disse isso tentando ter esperança e boa fé. Não quero soar extremista, a formalidade é uma ferramenta útil, casa bem com ambiente de trabalho, vendas e apresentação de projetos. Só! Quando um humano procura outro humano, assim de forma espontânea, é porque ele quer vivenciar uma troca afetiva. Nesses casos um escambo de memórias quase sempre cai bem. Mas esse tipo de negócio afetivo só funciona bem em ambiente propicio e adornado de frases e gestos ora belos ora deselegantes, desses regidos pelo improviso sincero. Esses elementos em conjunto são muito envolventes. A eles se dá o nome de espontaneidade. Esta, por sua vez, é uma das virtudes mais importantes para que ocorra uma troca/relação afetiva singular, ou seja, marcante. 
Todos nós temos um anel sinete, a nossa identidade. Quem realmente somos. As vezes essa joia fica perdida, sufocada pela pilha de entulho das memórias mal resolvidas, dos preconceitos hereditários e tradições familiares. Geralmente alguém assim é um desconhecido pela própria família. Nunca conheci uma pessoa formal bem resolvida, leve e realmente feliz.
Se alguém deseja ser único e marcante, precisa deixar de se esconder, encarar a realidade, impor/apresentar-se à família e amigos, deve soltar as amarras da alma. Deve vestir a própria pele, rir seu próprio riso a vontade, fazer o que gosta e falar do que gosta.
Apenas quem trilha esse caminho é realmente conhecido pela sua família e amigos. Quem enfrenta o desafio de ser quem é não precisa se esconder atrás do monturo da formalidade doméstica. 
Quer me conhecer? Me convide para um café na cozinha, traga uns biscoitos de leveza, sente-se como se estivesse só. Deixe o viajante que abita em você trocar umas fatias de memória com o viajante que abita em mim. Vale até falar de boca cheia só não vale ser formal. A formalidade brocha a minha alma.

Rômulo Rangel

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