sexta-feira, 15 de março de 2019

Lagoa do DERBA




Lagoa do DERBA

Vou te contar um uma história, ela aconteceu em Jequié na Bahia, senhora do engenho de minha alma. É sobre algo e onde. É bem verdade, essa cidade é difícil de ver de longe, pois fica velada, abraçada pela ciranda de montanhas que a cerca. Mas pra quem vem do litoral, passando por Ipiaú já vai conhecer uma pontinha dela que se estende para fora do cerco, cobrindo o então Vale El D’ourado, vulgo Morro dos Urubus. Logo ali a diante ao sopé da ladeira do Clube dos Maçons, ladeando o cemitério antigo está a Lagoa do DERBA, nome que pegou emprestado da antiga usina de asfalto, hoje extinta, que ficava as suas margens. Eis o palanque da narrativa.
Esse terreno privado, nunca cercado, mutante diante da valsa oscilante das intempéries do clima, passa alagado o período discretamente invernoso do ano. As mães mais cuidadosas admoestavam seus filhos a evitar passar pela orla da lagoa devido os muitos perigos. Os mais velhos fazem questão de lembrar que, no cemitério, em passado próximo, para se vagar carneiras para os novos inquilinos “permanentes”, os ossos secos dos mais antigos, desses mortos a muito não visitados, eram levados para tomar “baínho” e se refrescar à luz do luar. Junto a estes também eram deitados corpos frescos, resultados de desavenças, ciúmes ou crimes. Ambos, como em um casamento arranjado, afundavam juntos, em sua lama de mel derradeira.
Mas, na estiagem mingua-se a lagoa e nesse lento adeus, deixa em possas rasas, anfíbios mil em seus vários estágios, e peixes pulmonados com seu característico olhar de surpresa. Todos ali, na bizarra vitrine das garças que com seus hashis, escolhem a dedo as peças que mais lhe apetecem. Vagam também, pisando em ovos, os socós e seriemas, três dos animais a fartarem-se na seca. As aguas, mornas pelo sol, dissipam-se na velocidade das nuvens e não há aves que sejam suficientes para recolherem na gaiola de seus ventres todos aqueles bichos húmidos. Parece até que aqueles seres reluzentes derretem ao sol, se dissolvendo em seu próprio muco, transformando-se em um fino pântano de podridão, cujo odor invasivo atinge até meados do Colégio Polivalente cobrindo a tudo e a todos como um grosso cobertor flamejando à mercê de ventos cálidos. Em poucos dias (mais que suficientes), o sol se encarrega de mumificar os corpinhos que os vermes sobejaram. Pisando bem esses fantoches pálidos e crocantes, o fundo da lagoa, raso e plano, é promovido a campinho para o bába dos carinhas. Esse futebol feito nas cochas, acontece ali, num vão estranho. Entre duas traves de paus tortos fincados com força e careta, um menino pardo de cabelo empoeirado anda como equilibrista, medindo a distância com rigor. A divisão é pratica: um time com camisa contra o outro, sem camisa. O time mais fraco pode ter um a mais. A partida se inicia brusca. Entre um gol e outro, a falta é certa. Grandes e pequenos, todos “chegam quebrano” mas ninguém pede tempo. Manca-se um passo ou dois e logo apruma-se a marcha. Como um cachorro, aperta os olhos, inclina a cabeça para frente e espera a sua chance de “picálaporra”. Haverá ombro ralado e boca pocada. Ninguém liga. Aquele jogo é diversão e escola para a vida.
Na Lagoa do DERBA, por cima de ossos sem nome, a vida insiste, se choca e ferve nervosamente nos corpos desses meninos feitos de espinho, barro e cuspe.

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