Lagoa do DERBA
Vou
te contar um uma história, ela aconteceu em Jequié na Bahia, senhora do engenho
de minha alma. É sobre algo e onde. É bem verdade, essa cidade é difícil de ver
de longe, pois fica velada, abraçada pela ciranda de montanhas que a cerca. Mas
pra quem vem do litoral, passando por Ipiaú já vai conhecer uma pontinha dela
que se estende para fora do cerco, cobrindo o então Vale El D’ourado, vulgo
Morro dos Urubus. Logo ali a diante ao sopé da ladeira do Clube dos Maçons,
ladeando o cemitério antigo está a Lagoa do DERBA, nome que pegou emprestado da
antiga usina de asfalto, hoje extinta, que ficava as suas margens. Eis o
palanque da narrativa.
Esse
terreno privado, nunca cercado, mutante diante da valsa oscilante das
intempéries do clima, passa alagado o período discretamente invernoso do ano. As
mães mais cuidadosas admoestavam seus filhos a evitar passar pela orla da lagoa
devido os muitos perigos. Os mais velhos fazem questão de lembrar que, no
cemitério, em passado próximo, para se vagar carneiras para os novos inquilinos
“permanentes”, os ossos secos dos mais antigos, desses mortos a muito não
visitados, eram levados para tomar “baínho” e se refrescar à luz do luar. Junto
a estes também eram deitados corpos frescos, resultados de desavenças, ciúmes
ou crimes. Ambos, como em um casamento arranjado, afundavam juntos, em sua lama
de mel derradeira.
Mas,
na estiagem mingua-se a lagoa e nesse lento adeus, deixa em possas rasas,
anfíbios mil em seus vários estágios, e peixes pulmonados com seu característico
olhar de surpresa. Todos ali, na bizarra vitrine das garças que com seus hashis,
escolhem a dedo as peças que mais lhe apetecem. Vagam também, pisando em ovos,
os socós e seriemas, três dos animais a fartarem-se na seca. As aguas, mornas
pelo sol, dissipam-se na velocidade das nuvens e não há aves que sejam
suficientes para recolherem na gaiola de seus ventres todos aqueles bichos
húmidos. Parece até que aqueles seres reluzentes derretem ao sol, se
dissolvendo em seu próprio muco, transformando-se em um fino pântano de
podridão, cujo odor invasivo atinge até meados do Colégio Polivalente cobrindo
a tudo e a todos como um grosso cobertor flamejando à mercê de ventos cálidos.
Em poucos dias (mais que suficientes), o sol se encarrega de mumificar os corpinhos
que os vermes sobejaram. Pisando bem esses fantoches pálidos e crocantes, o
fundo da lagoa, raso e plano, é promovido a campinho para o bába dos carinhas. Esse
futebol feito nas cochas, acontece ali, num vão estranho. Entre duas traves de
paus tortos fincados com força e careta, um menino pardo de cabelo empoeirado
anda como equilibrista, medindo a distância com rigor. A divisão é pratica: um
time com camisa contra o outro, sem camisa. O time mais fraco pode ter um a
mais. A partida se inicia brusca. Entre um gol e outro, a falta é certa.
Grandes e pequenos, todos “chegam quebrano” mas ninguém pede tempo. Manca-se um
passo ou dois e logo apruma-se a marcha. Como um cachorro, aperta os olhos,
inclina a cabeça para frente e espera a sua chance de “picálaporra”. Haverá ombro
ralado e boca pocada. Ninguém liga. Aquele jogo é diversão e escola para a vida.
Na
Lagoa do DERBA, por cima de ossos sem nome, a vida insiste, se choca e ferve
nervosamente nos corpos desses meninos feitos de espinho, barro e cuspe.